terça-feira, 24 de março de 2020

Mãos enferrujadas

        Quando Marcos deixou o corpo físico, após mais de setenta anos vivendo no planeta terra, tinha certeza que iria para o céu, próximo a familiares e amigos. Não era má pessoa, pelo contrário, nasceu em berço de ouro como se costuma dizer, filho único de família riquíssima, nunca precisou trabalhar, aproveitou seu tempo para estudar e adquirir conhecimento.
        Era um bom parente, ajudava a todos com grandes quantias para que não o procurassem, mesmo não frequentando nenhuma igreja, fazia doações vultuosas. Gostava de viver em isolamento, interagia o mínimo possível, afinal se achava superior a todos, seja pelo dinheiro que possuía ou pelo conhecimento. Casou-se, teve filhos, mas não tirava nenhum minuto de sua rotina de estudos para estar com sua família.
        Ao chegar no plano espiritual, percebe que a vida continuava, tinha água para matar sua sede, o alimento sempre lhe aparecia quando estava com fome, mas seus braços não se mexiam, pareciam pedras. Observava a vida dos que ali chegavam e saiam do lugar onde acordou. Viu de longe sua cozinheira ser recebida e amparada por seres de luz, mas para ele que era rico e bom com todos, ninguém veio ajuda-lo.
        Passados alguns anos, já conformado com sua situação, alguém vem a seu encontro e o leva para o julgamento. Não era um julgamento convencional, apenas alguns foram escolhidos para conversar, ele era o último da fila. Quando chega a sua vez chorra, clama por ajuda, mostra os braços petrificados, faz um relato do quanto foi boa pessoa, dos que ajudou, mas é interrompido pelo juiz.
        -Meu amigo, não se trata de sua biografia, o tempo é curto, vamos ao que interessa.
        O juiz examina-o detidamente, passados alguns instantes pergunta:
        -Sua mente me diz que estudou muito, afinal sabes interagir. Você era casado?
        -Sim.
        -Teve filhos? cuidou deles?
        -Tive filhos, nunca cuidei deles, pois tínhamos muitos empregados.
        -Cuidou de sua casa?
        -Era minha mulher quem cuidava de tudo.
        -E quando seus filhos cresceram, ajudo-os na escolha de uma profissão?
        -Tínhamos professores particulares para isso.
        -Sofreu com o sofrimento dos seus amigos?
        -Sempre fugi das amizades, tinha receio, não queria prejudicar ou ser prejudicado.
        -Precisou trabalhar para garantir o sustento de sua família ou exercer alguma profissão?
        -Não, meus pais me deixaram uma grande fortuna, só administrei.
        O julgador parou, observou, refletiu por algum tempo e continuou:
        -Marcos você adotou alguma religião?
        -Sou cristão.
        -Ajudou os católicos?
        -Ajudei financeiramente, mas, detesto os sacerdotes.
        -Ajudou outras igrejas?
        -De modo algum, são extremamente intolerantes.
        -Seguia o espiritismo?
        -Não, tenho medo desse pessoal.
        -Amparou doentes em nome do Cristo?
        -A terra possui numerosos enfermeiros.
        -Auxiliou crianças abandonadas?
        -Existem creches para isso.
        -Escreveu alguma página consoladora em prol de alguém?
        -Para que? O mundo está cheio de livros e escritores.
        -Socorreu algum animal desprotegido?
        -Não.
        -Plantou alguma árvore ou cultivou a terra?
        -Nunca.
        O instrutor espiritual perguntou sobre todas as atividades dignas e conhecidas que Marcos poderia ter praticado e disse a sentença:
        -Meu amigo, você tem mãos enferrujadas.
        Marcos olha sem entender nada, fica sem palavras. O instrutor continua:
        -Você não usou nenhum de seus talentos, deixou a vida ir passando. Seu remédio é regressar a lição. Repita o curso terrestre.
         Marcos tenta argumentar, queria mais explicações.
         O juiz no entanto tinha mais coisas a fazer, delega um dos companheiros para que ajude Marcos.
         Luis era amável e paciente, já estava desencarnado a bastante tempo, ouve todas as lamentações de Marcos e por fim diz:
         -Vamos meu amigo, você deve se apressar para entrar na fila.
         -Fila?
         -Sim, fila da reencarnação meu amigo, é través dela que você mudará suas percepções e ampliará suas virtudes, através do trabalho e ajudando a todos que estiverem no seu caminho.
         E puxando o paralitico pelos ombros, concluía sorrindo:
         -Você precisa de movimentação.
      

Nenhum comentário:

Postar um comentário